Por Caio C. V. Machado e Daniel A. Dourado*

Ainda não podemos antecipar o tamanho do impacto da pandemia de Coronavírus (Covid-19) no mundo globalizado e as suas consequências na sociedade, mas parece certo que o isolamento social, a que grande parte da população será submetida, vai acelerar o processo de migração de serviços para prestação remota, sobretudo na assistência à saúde.

Contudo, embora o avanço desse setor de serviços à distância seja muito promissor, o seu crescimento desregulado pode trazer riscos à saúde individual e coletiva.

Empresas de serviços remotos têm tido altas históricas nas bolsas de valores. Por exemplo, a Zoom, de conferência remota, que teve uma alta de 23% em apenas um dia.

Aplicativos de assistência à saúde também surfam a mesma onda: no mesmo dia, a Teladoc Health, de agendamento de consultas médicas, teve alta de 7,6% e o Everbridge, que automatiza mensagens de emergência, teve alta de 12%.

Esses números sinalizam a aceleração de um fenômeno que já vinha acontecendo no Brasil e no mundo, e que aponta para desmaterialização (ou digitalização completa) de muitos serviços.

Os sistemas públicos de saúde têm aderido ao uso de aplicativos para disseminar informações sobre surtos, monitorar a expansão de epidemias e orientar pessoas sobre sintomas e formas de prevenção de doenças.

Mas o mercado de aplicativos de saúde e bem-estar é mais amplo e contempla inúmeros serviços, tais como: orientações sobre tratamentos fisioterápicos, meditação e controle de estresse, bases de controle sobre doenças e sintomas, receitas e dietas, controle de calorias, indicações de treinos personalizados e até prometem ajudar na contracepção.

O setor recebe investimentos diretos das gigantes como a Apple e a Google e já apresenta seus primeiros “unicórnios”, como a Calm e a Headspace.

É importante, porém,  atentar para o fato de que esses aplicativos podem ser mais nocivos do que aparentam. Primeiro, porque eles não têm sido submetidos às regulações setoriais da saúde e aos mecanismos tradicionais de responsabilização, em caso de problemas.

Segundo, porque muitos desses aplicativos oferecem orientações genéricas, com base em modelos pouco testados. Por exemplo, um usuário do Fitbit recebia recomendações para caminhar 60 mil passos por dia (cerca de 41 quilômetros!).

A literatura sobre os impactos físicos e, inclusive, psicológicos, desses aplicativos, começa a surgir e, em muitos casos, há pouca evidência dos seus efeitos positivos.

Ao oferecer receitas e dietas impróprias, ou exercícios sem qualquer supervisão técnica, esses aplicativos, por vezes, acabam se tornando vetores de desinformação.

Em muitas ocasiões, informações falsas sobre remédios caseiros, dietas esdrúxulas e outras orientações deletérias acabam ganhando adesão do grande público, por conta dessas formas remotas e indiretas de prestação de serviços.

A tecnologia tem um enorme poder de conduzir grandes grupos, tanto para o bem, quanto para o mal.

No caso da pandemia de Covid-19, a desinformação tem sido um grave problema, ao ponto de a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter adotado medidas específicas para fazer frente à “infodemia”, um neologismo que significa a disseminação massiva de informações, muitas delas falsas.

A exemplificar essa situação, as autoridades sanitárias da França, e até mesmo o presidente Emmanuel Macron, precisaram vir a público esclarecer que o uso da cocaína não previne contra a infecção do coronavírus, pois essa teoria ganhou força nas redes sociais do país.

Especulações como esta têm surgido e sido desmentidas a todo instante pelas autoridades e pela mídia global. Assim, as grandes empresas de tecnologia também começam a adotar medidas nesse sentido.

Foi o caso da Apple, que decidiu combater a desinformação, emanada dos serviços ofertados na Apple Store, restringindo a liberação de aplicativos, que tratem de Covid-19, apenas a organizações governamentais, ONGs que atuam na área da saúde, instituições médicas e afins.

O isolamento provocado pela pandemia de Covid-19 deve, sem dúvida, acelerar a expansão de serviços à distância, sobretudo aqueles de assistência à saúde e bem-estar, como afirmamos no início deste artigo.

Todavia, pelo exposto, fica clara também a necessidade de controlar essa expansão. Pois a desinformação e a falta de regulação desses serviços apresentam potencial danoso em escala.

*Caio C. V. Machado

Advogado consultor no escritório Filhorini Advogados Associados e cientista social. Mestre em Direito Digital pela Sorbonne e em ciências sociais aplicada à internet pela Universidade de Oxford. Cofundador do HealthTech & Society https://www.htsoc.org/

*Daniel A. Dourado

Médico e advogado, professor universitário e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da USP. Cofundador do HealthTech & Society https://www.htsoc.org/

 Fonte: O Estado de S. Paulo , 15/04/20.