Por Olavo Caiuby Bernardes – Sócio na área Empresarial/Internacional do escritório Filhorini Advogados Associados e professor no Instituto de Inglês Jurídico Thiago Calmon. Mestre/LLM em Direito Internacional (US and Transnational Law) pela Universidade de Miami.

I – Introdução

Em artigo anterior, foi trazida análise sobre as competências constitucionais dos poderes executivo e legislativos federais dos Estados Unidos da América, fazendo-se um comparativo entre o federalismo centrífugo norte-americano (que se afasta do centro/do governo federal) com o federalismo centrípeto brasileiro (que se aproxima do centro/do governo federal).

No presente trabalho, o foco será nas competências e prerrogativas dos Estados-membros da federação norte-americana, quando em choque com as prerrogativas, competências e privilégios (executive privileges) do governo federal e do Congresso dos EUA, e decisões-chaves (landmark decisions) da Suprema Corte dos EUA — conforme anteriormente mencionado, um tribunal federal —, na resolução do conflito historicamente bastante presente no federalismo centrífugo norte-americano, que é a questão da autonomia e direito dos estados (states’ rights).

II – Competências e Prerrogativas do Estados Norte-Americanos. Os Direitos dos Estados (States’ Rights)

Como previamente mencionado, a Constituição dos EUA, de 1787, estabeleceu a primeira federação na história moderna, os Estados Unidos da América (anteriormente, uma confederação), originalmente 13 Colônias Britânicas, posteriormente transformadas em estados.

Desde o seu início, o federalismo nos EUA foi concebido por seus pais fundadores (founding fathers) como “uma união mais que perfeita” (a more than perfect union) entre seus recém-criados estados, originalmente 13 (e, atualmente, 50), renunciando à sua soberania (conhecida pelos romanos como suprema potestas – poder supremo), como de declarar guerra, firmar tratados de paz e estabelecer relações diplomáticas com outros Estados Soberanos, e a concedendo a um poder central (também conhecido como a União Federal – the Federal Union –, ou, governo federal/governo federal dos EUA – US Federal Government), mantendo, no entanto, uma vasta autonomia e competências (poderes/powers) em assuntos regionais e locais. O que inclui competências executivas/administrativas, judiciais, e, especialmente, competências legislativas[1].

A Constituição dos EUA de 1787, nesse sentido, delimita principalmente competências e prerrogativas dos poderes executivo e legislativo federal, deixando as competências residuais/remanescentes dos estados sujeitas à ampla interpretação (10ª Emenda da Constituição dos EUA).

Isso em oposição à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que, a despeito de igualmente estabelecer poderes residuais/remanescentes aos estados brasileiros (artigo 25, § 1º, CRFB/1988), delimita exaustivamente suas competências administrativas e legislativas (artigos 21 a 25, CRFB/1988), e inclusive as competências dos municípios brasileiros — um tema não reservado à uma Constituição Federal, em um federalismo típico, como o federalismo norte-americano (artigos 23, 29 e 30, CRFB/1988)[2].

A 10ª Emenda da Constituição dos EUA prevê, em tradução livre, que: “Os poderes não delegados aos Estados Unidos por sua Constituição, nem tampouco proibidos aos estados, são reservados aos estados, respectivamente, ou ao povo [dos EUA]”. Esses são os chamados poderes reservados (reserved powers). Entre esses poderes/competências, cabe mencionar o de tributar, policiar e regular, como regulações de salários e horas de trabalho, expedição de licenças e alvarás, acesso a informações em órgãos públicos, entre outros.

Em resumo, os estados norte-americanos possuem vastos poderes. Também, é interessante observar que leis estaduais muitas vezes podem ser feitas por referendos e iniciativas, não pelo poder legislativo estadual, com a direta participação dos eleitores do estado (em inglês, constituents).

Outra peculiaridade é que governadores de estado podem ser removidos do cargo, não apenas por um processo de impedimento (em inglês, impeachment), liderado pelas assembleias legislativas de seus estados, porém, igualmente, por um mecanismo por lá conhecido por “recall”, em que um número de eleitores de estados assinam uma petição para ter seu governador removido do cargo.

O caso internacionalmente mais conhecido foi a remoção por recall do ex-governador do estado da Califórnia, Gray Davis, em 2003, e a posterior eleição do ex-fisioculturista e ator de Hollywood Arnold Schwarzenegger ao cargo de governador[3].

III – As Cláusulas de Comércio e da Supremacia da Constituição e os Direitos dos Estados

Delimitados esses primeiros conceitos e competências, cabe indagar quais são as limitações dos estados em seu poder de tributar e policiar, por exemplo? Em resumo, quais são os chamados “direitos dos estados”?

Para responder a isso, deve-se voltar ao Artigo 1º, Seção 8, da Constituição dos EUA, de 1787, mencionada na primeira parte do artigo. Aquela seção, conhecida por juristas norte-americanos por “Cláusula do Comércio (Commerce Clause)”, em tradução livre, lê-se como segue: “Ao Congresso será atribuído poder: (…) “De regular o Comércio com nações estrangeiras, e entre diversos estados, e com tribos indígenas (Indian Tribes)”.

Inicialmente, faz-se interessante observar que a proteção a tribos e reservas indígenas é de competência federal. Sendo assim, toda legislação referente a povos nativos (Native-Americans, em inglês) e a demarcação de suas terras é de competência do Congresso Norte-Americano, e agências relacionadas são autarquias federais, parte da administração pública federal (exemplo: Agência de Assuntos Indígenas/ Bureau of Indian Affairs – BIA, parte do Departamento do Interior dos EUA/ United States Department of the Interior) e assuntos judiciais envolvendo povos indígenas norte-americanos são de competência de tribunais federais[4].

Isso se faz bastante similar à forma que tribos/povos indígenas são protegidos no Brasil, igualmente por legislação promulgada pelo Congresso Nacional (artigo 22, XIV, CRFB/1988), e por autarquias federais (mais particularmente, a Fundação Nacional do Índio –Funai, hoje em dia subordinada ao Ministério da Justiça). Igualmente, cortes federais brasileiras possuem competência sobre todos os temas relacionados a povos indígenas e à demarcação de suas terras constitucionalmente asseguradas (artigo 109, XI; artigo 231; ADCT 67, CRFB/1988).

Como previamente mencionado, a Cláusula da Supremacia da Constituição do EUA (em inglês, Supremacy Clause) estabelece que a Constituição, além de leis federais feitas em acordo com ela, e tratados celebrados sob sua autoridade, constituem a “Lei Suprema do Território (Supreme Law of the Land)”, sendo assim, tem prevalência em relação a quaisquer leis estaduais conflitantes (Artigo VI, Cláusula 2a, da Constituição dos EUA).

O tema de preempção federal é chave para se entender como opera o conflito entre prerrogativas estatais (states’ rights) e autoridade congressual (congressional authority).

Primeiro, faz-se importante mencionar que a definição de comércio nos Estados Unidos é bastante ampla e pode compreender, entre outras, relações de trabalho, viagens interestaduais, e o fluxo geral de pessoas, não apenas de bens e serviços.

Leis federais marcos (landmark legislation) no combate à segregação racial, tais como a Lei dos Direitos Civis (US Civil Rights Act), de 1964, e a Lei do Direito ao Voto (Voting Rights Act), de 1965, foram aprovadas tendo como base os efeitos da segregação no comércio interestadual (Veja Heart of Atlanta Motel, Inc. v. United States, 1964; Katzenbach v. McClung, 1964).

Em relação à imigração, é seguro afirmar a autoridade do Congresso/governo federal no tema (“comércio com nações estrangeiras”, previsto no Artigo 1º, Seção 8, da Constituição dos EUA). No entanto, os estados vêm tentando constantemente ampliar suas prerrogativas sobre imigração, visto ser um tema nacionalmente controverso.

Um caso recente que vale mencionar é a contestação em tribunais (judicial challenge) do governo do ex-presidente Barack Obama (2009-2017) à draconiana Arizona‘s S.B. 1070, uma lei estadual de 2010, promulgada pela então governadora republicana do estado do Arizona, Jan Brewer, visando aumentar as competências e prerrogativas de autoridades daquele estado, que faz fronteira com o México, para executarem leis federais imigratórias.

A ação impetrada pelo governo Obama em tribunais federais chegou à Suprema Corte, em 2012 (Arizona v. United States, 2012), quando uma maioria de seus ministros (Justices) declarou inconstitucional diversas cláusulas daquela lei, por haver preempção federal (leia-se, prevalência de lei federal em relação ao tema), derivada da Cláusula da Supremacia da Constituição.

Em particular sua Seção 6, que autorizava prisões sem mandado judicial (warrantless arrests) de estrangeiros/alienígenas suspeitos (em inglês jurídico, aliens) para fim de serem deportados dos Estados Unidos com base em causa provável (probable cause).

IV – Direito à Privacidade e os Direitos dos Estados

A discussão de quais são as prerrogativas estatais, o direito dos estados em legislar em temas de seu interesse, percorreu um longo histórico em tribunais norte-americanos, em particular a Suprema Corte Norte-Americana.

No decorrer de sua história, especialmente a partir dos meados da década de 30 do Século XX (época do New Deal, governo de centro-esquerda do ex-presidente democrata Franklin Delano Roosevelt – 1933-1945), aquele tribunal caminhou gradativamente para uma perspectiva mais interveniente, quando se trata de direitos e garantias fundamentais – delimitado na famosa Nota de Rodapé (Footnote) nº 4, em United States vs. Caroline Products, julgado pela Suprema Corte em 1938 –, restringindo os direitos e prerrogativas dos estados, sob o argumento de um suposto direito à privacidade nas entrelinhas da Constituição dos EUA, começando por Griswold v. Connecticut (1965) (uso de contraceptivos); Loving vs. Virginia (1967) (casamentos interraciais); Roe vs. Wade (1973) (aborto); Lawrence vs. Texas (2003) (leis antissodomia criminalizando relações sexuais homoafetivas) e, mais recentemente, Obergefell v. Hodges (2015) (casamento entre pessoas do mesmo sexo)[5].

Finalmente, no que concerne à preempção federal, após a conhecida por “Era Lochner” (1905 até a segunda metade dos anos 30), quando a Suprema Corte Norte-Americana derrubou quase toda regulação federal envolvendo assuntos estatais, esta se tornou mais presente nas decisões daquele tribunal.

Pode-se citar, além da Lei do Arizona de 2010, anteriormente mencionada, o caso Gonzales vs. Raich (2005) (envolvendo lei do estado da California permitindo a plantação de maconha para propósitos medicinais, declarada inconstitucional, por haver lei federal listando cannabis como substância ilícita entorpecente).

Por outro lado, aquele tribunal em múltiplas ocasiões, a começar na década de 90, quando da discussão dos direitos dos estados norte-americanos, descartou a prevalência de leis federais, reconhecendo a aplicação de leis estaduais, começando com United States vs. Lopez (1995) (envolvendo uma lei federal criando controle ao porte de armas em escolas públicas) e, mais recentemente, Altria Group v. Good (2008) (envolvendo regulações federais sobre propaganda de tabaco).

Para efeitos comparativos, no que concerne o Brasil, e seu federalismo historicamente centralizado em torno do governo federal (centrípeto) e atípico (competências da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, delimitadas na Constituição Federal de 1988 – artigos 21 a 25; 29 a 30, e 32, CRFB/1988), e não objeto de análise do presente trabalho, conforme mencionado no artigo anterior, a atual pandemia do novo coronavírus (Covid-19), levou à uma descentralização (centrifugação) no que concerne ao aumento dos poderes e competências dos demais entes federativos, que não apenas da União/governo federal para tomar medidas durante esse tempo de crise.

Entre os principais julgados de nosso Supremo Tribunal Federal, no primeiro semestre de 2020, em sede de controle de constitucionalidade (art. 102, I, alínea ‘a’, CRFB/1988), pode-se citar, sobretudo, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nº 6341, 6343 e a Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) nº 672.

Se com esses julgados, e o clima de nossa Suprema Corte e agentes políticos que a provocam, frontalmente antagônicos ao atual governo federal, irá resultar um federalismo brasileiro mais próximo do federalismo norte-americano, garantindo-se autonomia e prerrogativas (direitos) de seus estados, é algo que apenas o tempo dirá.

 

Fonte: Portal Jota, 04/09/2020.

________________________________________

[1] O autor prefere o termo competências, ou funções, ao invés de poderes, pois conforme esclarecido por Jean Bodin, em Os Seis Livros da República, o poder soberano é uno, inalienável, indivisível e imprescritível, e no Estado Democrático de Direito (Bodin, autor clássico, era defensor do direito divino dos reis) emana do povo (soberania popular), que, no caso do Brasil, exerce-o mediante representantes eleitos e diretamente nos termos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (parágrafo único, do artigo 1º, da CRFB/1988).

[2] Para o exercício de sua soberania (poder supremo sobre determinado território), o Estado moderno, adotando a teoria trazida por Montesquieu em O Espírito das Leis, divide-a em três funções (branches, em inglês), ou três poderes, Poder Executivo, Legislativo e Judiciário (artigos 1º, 2º e 3º, Constituição dos EUA, de 1787/ artigo 2º, CRFB/1988). E em uma federação são concedidas competências constitucionais aos Estados-membros, garantindo-lhes constitucionalmente sua autonomia, esta cláusula pétrea, em um sistema federativo (portanto, não podem ser revogadas, ou limitadas por emenda constitucional. Esse o chamado “princípio federativo”) (artigo 1º, Seção 8 e 10ª Emenda, Constituição dos EUA, de 1787/ artigo 1º, ‘caput’ e artigo 18, CRFB/1988).

[3] O recall (em português, recolhimento), instrumento de participação direta da população (democracia semidireta, ou participativa), amplamente adotado em diversos estados norte-americanos, não existe no ordenamento jurídico brasileiro, que, de acordo com o artigo 14 da CRFB/1988, prevê, como instrumentos de participação direta da população, para o exercício da soberania popular, o plebiscito (inc. I), referendo (inc. II) e lei de iniciativa popular (inc. III) (regulamentado infraconstitucionalmente pela Lei Federal nº 9.709/1998).

[4] Nos EUA se usa o termo jurisdiction (jurisdição), para as competências de tribunais. No entanto, como se observa pela doutrina no Brasil, jurisdição (a capacidade de aplicar e interpretar o Direito) é una, e pertence ao Estado Brasileiro, que o exerce por meio do seu Poder Judiciário. Seus diversos tribunais possuem competência por matéria, de acordo com suas funções.

[5] O conceito de um Direito à Privacidade (The Right to Privacy) surge inicialmente em um artigo escrito por Samuel Warren e Louis Brandeis (esse futuramente ministro da Suprema Corte dos EUA), publicado na Revista de Direito de Harvard, em 1890. A despeito de não haver na Constituição dos EUA explicitamente um Direito à Privacidade (ou intimidade), a Suprema Corte Norte-Americana em Griswold por 7 votos a 2 declarou que o direito à privacidade é um direito constitucional previsto nas “penumbras” e “emanações” da Declaração de Direitos (Bill of Rights) (exemplo: Quarta Emenda – inviolabilidade do domicílio). Além disso, a privacidade estaria protegida na cláusula do devido processo legal (due process clause) da 14ª Emenda.